Quando essa preta
Começa a tratar do cabelo
É de se olhar
Toda trama da trança
Transa do cabelo
Conchas do mar
Ela manda buscar
Prá botar no cabelo
Toda minúcia, toda delícia...
(Beleza Pura – Caetano Veloso)
O
que é beleza? Estamos falando de um conceito antropológico e socialmente
construído. Ele não é igual em todos lugares no mundo e nem em todas as
sociedades. Contudo, beleza, também, se tornou uma mercadoria, um item de consumo
cada vez mais caro, com a promessa de trazer felicidade, aceitação, poder,
ascensão e quem sabe alguns minutos na babel televisiva, no caldeirão das
celebridades?
Os
padrões de beleza variam conforme os períodos históricos e consequentemente
seus modos de produção. E, por muito tempo teve um forte recorte de gênero:
beleza era, conforme o padrão da época, um atributo desejável para uma mulher e
facilitador para casamentos.
Na
mitologia grega a beleza foi personificada por uma deusa Afrodite ou Vênus.
Entre os egípcios, Hator, entre os hindus Lakshmi, no panteão dos Orixás, Oxum.
A
descoberta de outros povos, com outras cores, com outras formações corporais,
trouxe estranhamento e perplexidade. Haviam indianos, japoneses, chineses,
índios, gente de cor negra. Apesar da Antiguidade já registrar o contato entre
os povos romanos, judeus, egípcios, gregos, orientais, entre outros.
Mas,
o padrão europeu prevaleceu como o padrão de beleza, penso eu, muito ligado ao
padrão Grego. Com o advento do capitalismo a beleza deixou de ser apenas um
atributo desejável, divino, transcendente do ponto de vista da estética para se
tornar, como assinalei acima, mercadoria. E que beleza é essa? Ela é branca,
loira, de olhos azuis ou verdes (preferencialmente), de corpo perfeito (barriga
negativa), sarada, com muito peito e muita bunda!!!! Hoje é Gisele Bündchen, o
padrão de beleza (uma brasileira???) perfeito. Quando eu era garota, Xuxa
Meneghel
a e suas paquitas eram o padrão perfeito da beleza.
E,
ser negra na ditadura das loiras era ser feia. Lembro que Zezé Motta foi uma
das primeiras atrizes a protagonizar uma personagem fora dos estereótipos que a
TV aponta para nós, não lembro a novela, mas, ela fazia par romântico com
Marcos Paulo (que seria o Ricardo Tozzi, Cauã Raymond, Marcos Pigossi de hoje)
e, pasmem, não era empregada doméstica! Era uma arquiteta, paisagista. Obvio
que o tema preconceito veio à tona e me lembro de uma radialista, hoje em cargo
legislativo, fazia em seu programa comentários sobre novelas e outros temas
televisivos. O tema era então o preconceito que a sociedade vinha demostrando
com o estranhamento daquele casal interracial e me lembro como hoje que ao
invés de debater o preconceito a referida jornalista me saiu com a seguinte pérola:
“Zezé Motta é uma negra feia…. Eu não a acho bonita! ” Bem, ninguém estava
falando se Zezé Motta era feia ou bonita, o debate era a reação da sociedade ao
casal interracial…, mas, naquele momento, eu uma garota, uma adolescente, ouvir
isso repercutiu em mim, porque (feia ou bonita), aquela era a primeira vez que
eu via uma atriz negra protagonizando uma história de amor interracial e não
ocupando os lugares que a sociedade sempre diz que deve ser de uma preta:
serviçal, subempregada, desfrutável, favelada barraqueira. E, ela era a negra
feia e, portanto, como é que podia “namorar” o galã Marcos Paulo, nem que fosse
na ficção?
Eu
ouvi muitas vezes que devia alisar meu cabelo duro, meu pixaim, meu cabelo
Bombril, meu cabelo feio, era o tal de “arrumar o cabelo”, e lá sofri anos
(desde pequena), com pasta alisante, henê, ferro e chapinha baiana, óleo alisante,
creme alisante...E tudo detonava meu cabelo, porque ele é muito fino e
frágil...então eu estava sempre com aquele cabelo seco, sem vida, quebrado,
detonado. Mas, afinal, na ditadura das loiras, brancas, o cabelo precisava ser
liso, “bom”.
Ouvia
muito também o tal de: morena, moreninha, morena jambo…e “até que você é
bonitinha”, ou então “Olha como é exótica! ”
Eu
não entendia porque os meninos não queriam namorar comigo e se rolava uma
festa, eles queriam ficar e abusar...só depois é que eu fui aprender que a
“neguinha” é para usar…Mesmo que na festa eu fosse a “garota” mais “linda”, tão
“linda” que as meninas ficavam com raiva e os meninos que não queriam me
namorar ficavam de boca aberta! Eu tinha um lugar que a sociedade já me marcara
para ficar!
Mas,
foi somente o processo de conscientização sobre a minha negritude que começou
na faculdade que me trouxe libertação. A primeira transgressão foi usar as
traças nagô (após uma grande briga com minha mãe) e qual foi o meu espanto ao
olhar pela primeira vez a minha beleza negra e poder dizer para mim mesma: Meu
Deus eu sou bonita!
A
partir daí foram as tranças, meus grandes brincos, colares, pulseiras, batons
que valorizavam minha negritude e quando passava deixava muitas bocas abertas,
muitos olhares acompanhando, aquela preta abusada que ousava a não ficar no
lugar que “marcaram para ela”.
Mas,
nossa sociedade também passou por mudanças, negros começaram a ascender
socialmente, revistas especializadas tratavam da “nossa beleza”, negras e
negros “bonitos” começaram a ter destaque na TV e finalmente as mídias sociais
“soltaram o verbo”, nos desprenderam das mídias oficiais e pretos e pretas “lindas”
saíram do anonimato. Ver-se, reconhecer-se é importante! Porque você passa a
ser existente, o menino e a menina tem sua boneca, tem seus heróis...as
mulheres de meia idade tem uma Viola Davis, fazendo uma personagem poderosa,
linda, sexy, sem corpo sarado e barriga negativa. Que maravilhosa!
Turbantes,
tranças nagôs, cabelos naturais, vestidos coloridos, floridos, com motivos
étnicos, brincos, colares, pulseiras, maquiagens..., Mas, Candida isso é a
indústria da beleza! Sim, eu sei, mas, ela precisou se ampliar e se render a
uma população que até duas décadas atrás não existia.
E
fazê-la se render a nós é uma vitória, porque ela tem que dizer: pretos e
pretas existem. E existem de várias formas: baixos, altos, gordos, magros,
heterossexuais, homossexuais, pretos de vários tons de cor, todos eles
trançando seus cabelos, usando seus turbantes, assumindo seus cabelos, fazendo
moda, criando tendência, fazendo história nas redes sociais, exibindo sua
beleza variada, desafiando a “ditadura da beleza” que a sociedade impõe, até
para nós pretos, porque agora tem aquele tipo de preto e preta bonita: o corpo
perfeito, os longos cabelos crespos, um rosto “mais fino”...
E
você Candida? Bem, eu assumi meus turbantes, minhas tranças novamente
(abusadamente loiras...quem disse que eu não posso ser loira????) E agora meus
cabelos naturais e simmmmm...SOU BONITA! Sou uma Candace (rainhas guerreiras
africanas), uma Nefertite (rainha da XVIII dinastia do Antigo Egito, esposa
principal do faraó Amenófis IV, mais conhecido como Aquenáton.), fiz uma selfie
em que fiquei a cópia de Nefertite....Minhas fotos não têm filtro, photoshop,
no máximo eu estou lá com meu batom ou cara limpa, e agora me olho e vejo uma
linda mulher. Uma preta, com uma história, uma preta com uma alma poeta, uma
preta com sua espiritualidade, uma preta que desafiou os “lugares que devia
ficar”, uma preta que se descobriu não de fora para dentro, mas, de dentro para
fora, que desabrochou como uma linda e esplendorosa Flor de Novembro.
Eu
não pareço com a atriz A ou C. Nem com a miss D ou E. Nem com a cantora X ou Y,
eu pareço comigo. Elas são bonitas? Não sei, eu as vejo sempre maquiadas, em
fotos de photoshop.... Você é bonita? Ah....eu sou.…quando eu olho a minha
história, que se junta a história da minha mãe, da minha avó, da minha bisavó e
de meus ancestrais…. Eu sou muito, muito bela...Eu sou Beleza Pura! E cada
preta, cada preto, cada branco, cada pessoa deve descobrir sua Beleza Pura.
Porque toda gente é bonita de natureza! E, o mais lindo que se pode fazer é
transgredir a ditadura da beleza que se impõe a nós. Transgrida, descubra-se,
desabroche e faça sua escolha de quem você é e não do que dizem quem você deve
ser!
Candida
Maria