Faz um mês que participo do Projeto Rompendo Barreiras na
UERJ que tem como objetivo a inclusão de pessoas portadoras de deficiência
visual ou baixa visão, tem sido estimulante trabalhar com a equipe liderada
pela prof. Valéria Oliveira, e o trabalho tem me levantando questões para
reflexão muito importante.
A problemática da deficiência não me é de todo estranha, meu
marido é portador de deficiência física decorrente de um acidente com arma de
fogo, tenho acompanhado o processo de inclusão social do meu esposo,
principalmente a laboral de perto, e sempre fazemos algumas observações e
criticas a esta tal “inclusão”.
Primeiro porque a cidade e os meios de transportes não estão
preparados para dar acessibilidade ao portador de deficiência, o que nos remete
ao um fato simples: ele não tem meios adequados para chegar ao seu local de
trabalho.
Segundo poucos são os portadores de deficiência qualificados
profissionalmente para serem absorvidos no Mercado de Trabalho, e pergunta-se
onde esta o hiato entre os programas de qualificação e os seus destinatários:
divulgação, localidade, locomoção, renda, ensino?
Terceiro, a carga horária é diferenciada e o salário menor,
ora se quero incluir alguém devo fazê-lo plenamente, com todos os direitos e
deveres, e fica pergunta por que a carga horária e o salário do portador de
deficiência são menores do que os dos seus colegas de trabalho?
Contudo, meu pensamento não são apenas essas questões, mas,
a própria representação da pessoa deficiente, que podemos analisar pela própria
essência da palavra, assim define o Aurélio: deficiência s. f.Imperfeição,
falta, lacuna.
A palavra remete ao estado de imperfeição, a alguém que
possui uma lacuna ou tem falta de alguma coisa, a palavra é plena em
significado negativo, daquilo que é mal, ou que carrega em si uma carga
imperfeita e dessa forma imprestável para a sociedade.
Em tempos primitivos uma deficiência acarretava certamente à
morte devido a necessidade de sobrevivência, o nomadismo, a garantia de
perpetuação da espécie, em tempos que a força física se fazia necessária para a
manutenção do grupo, mas, podemos dizer isso hipoteticamente, não há garantias
se os grupos cuidavam de entes deficientes como os doentes e idosos.
Nas civilizações antigas, o Egito foi a que deu lugar e
destaque aos deficientes, há a foto de um anão tocando um instrumento e uma
escrita onde podemos ver um cego em seu cotidiano. A medicina egípcia também se
importava quanto à cura ou terapia de pessoas com deficiência.
Evidências arqueológicas nos fazem concluir que no Egito
Antigo, há mais de cinco mil anos, a pessoa com deficiência integrava-se nas
diferentes e hierarquizadas classes sociais (faraó, nobres, altos funcionários,
artesãos, agricultores, escravos). A arte egípcia, os afrescos, os papiros, os
túmulos e as múmias estão repletos dessas revelações. Os estudos acadêmicos
baseados em restos biológicos, de mais ou menos 4.500 a.C., ressaltam que as
pessoas com nanismo não tinham qualquer impedimento físico para as suas
ocupações e ofícios, principalmente de dançarinos e músicos.(Gurgel,
http://www.ampid.org.br)
Contudo a sociedade romana não admitia a deficiência física,
sendo mortas as crianças que assim nascessem e deixados na miséria soldados que
retornavam ao campo de batalha mutilados.
As leis romanas da Antiguidade não eram favoráveis às
pessoas que nasciam com deficiência. Aos pais era permitido matar as crianças
que com deformidades físicas, pela prática do afogamento. Relatos nos dão
conta, no entanto, que os pais abandonavam seus filhos em cestos no Rio Tibre,
ou em outros lugares sagrados. Os sobreviventes eram explorados nas cidades por
“esmoladores”, ou passavam a fazer parte de circos para o entretenimento dos
abastados. (GURGEL, http://www.ampid.org.br)
Em Esparta, o destino de crianças deficientes era o mesmo do
que de Roma, visto a sociedade Espartana ser completamente voltada para a
guerra, os esportes e o culto ao corpo perfeito.
Em Atenas apenas os que se dedicavam a vida de contemplação
filosófica pareciam gozar de alguma aceitação, escravos, trabalhadores e
mulheres que já eram tidos como inferiores, eram mais inferiores ainda em casos
de deficiência. Apesar do mito de Tirésias:
Enquanto passeava, Tirésias encontrou duas serpentes em
cópula, as quais atingiu com o seu bordão. Uma tal ação enfureceu Hera, que
decidiu transformar o seu perpetrador em mulher. A partir daqui, são diversas
as versões do mito, com algumas a mencionarem Tirésias como uma famosa
prostituta, enquanto que outras a referem como uma sacerdotisa de Hera. Eventualmente,
esta figura encontrou outras duas serpentes em cópula, e pelas suas novas ações
voltou ao seu sexo original.
Mais tarde, Zeus e Hera tiveram uma curiosa discussão,
relativa à que sexo tira mais prazer do ato sexual. Hera mostrou-se
simpatizante pelo lado masculino, enquanto que Zeus referia o sexo feminino
como o mais feliz nessa questão, e pela sua experiência única decidiram chamar
Tirésias. Ainda desprovido dos seus famosos dons, este habitante de Tebas
proferiu uma curiosa idéia - "das dez partes do prazer, o homem apenas tem
uma" - a qual exaltou a ira de Hera, que o cegou. Para compensar tal ato,
Zeus deu a este homem o dom da profecia, que seria um dos mais famosos da
Grécia Antiga.(extraído de http://mitologia.blogs.sapo.pt em 07/04/11 as 17.35).
Contudo a Atenas filosófica e não mais mitológica só
concebia um lugar ao deficiente, o de pensador, desde que sua deficiência não o
impedisse de ler.
No judaísmo o deficiente era visto como um pecador ou filho
de pecadores. Sacerdotes deficientes não podiam chegar ao Santo dos Santos.
Jesus reverteu essa lógica, no caso de um cego de nascença que vivia no templo
medingando, fez uma distinção muito clara que nem ele e nem os pais haviam
pecado, mas, que sua cegueira era para manifestação da Glória de Deus, após a
cura do cego, Jesus fez clara distinção entre a cegueira física e a cegueira
espiritual.
Levados por esses ensinamentos de Jesus, os apóstolos e a
Igreja do primeiro século, tendiam a serem caridosas com os deficientes. Quando
o evangelho penetrou na sociedade romana a cultura de matar os deficientes ou
deixá-los sem amparo foi mudada.
Em Alexandria foi criada a primeira universidade de estudos
filosóficos e teológicos de grandes mestres. Dentre eles, Dídimo, o Cego,
conhecia e recitava a Bíblia de cor. No período em que começava a ler e
escrever aos cinco anos de idade, Dídimo perdeu a visão mas, continuou seus
estudos, tendo ele próprio gravado o alfabeto em madeira para utilizar o tato.
As Constituições romanas do Imperador Leão III havia a previsão
da pena de vazar os olhos ou amputar as mãos dos traidores do Império. Há
registros de que os índices de criminalidade baixaram. Esta pena foi praticada
até a queda do Império Romano e continuou sendo aplicada no Oriente
A Idade Média, onde a bíblia recebeu interpretações
extremamente equivocadas a deficiência voltou a ser estigma de pecado.
A população ignorante encarava o nascimento de pessoas com
deficiência como castigo de Deus. Os supersticiosos viam nelas poderes
especiais de feiticeiros ou bruxos. As crianças que sobreviviam eram separadas
de suas famílias e quase sempre ridicularizadas. A literatura da época coloca
os anões e os corcundas como focos de diversão dos mais abastados. (Gurgel,
http://www.ampid.org.br)
Em religiões onde se acredita em Carma ela é vista como
“pagamento de erros passados” ou “sofrimento para purificação da alma”, e assim
levar o indivíduo a evolução. O rei Luís IX fundou o primeiro hospital para
pessoas cegas,
Com o advento do capitalismo e a necessidade de mão de obra
para a produção o deficiente passou a ser visto como um estorvo, pois não
estaria apto a fazer parte da cadeia produtiva, para o detentor dos meios de
produção não servia como mão de obra e para a família não produzia e consumia o
que era produzido pelo grupo.
São dessa época que as Santas Casas de Misericórdia e os
asilos vão recolher diversos tipos de deficientes a fim de lhes fazer caridade,
numa protoforma das primeiras ações assistenciais junto a este publico.
Nas famílias burguesas o nascimento de uma criança
deficiente era um escândalo em sua maioria, sendo a criança confinada com babás
e escondida de outros membros da família ou amigos, ou depositadas na roda dos
expostos. O marido sempre culpava a mulher pelo filho deficiente e a situação
era vista como uma mácula ao bom nome familiar, principalmente se a deficiência
fosse de origem mental.
Mas, algumas iniciativas pioneiras são dessa época, com o
iluminismo e as descobertas científicas. Gerolamo Cardomo, médico e matemático
criou um código para ensinar pessoas surdas a ler e escrever, influenciando o
monge beneditino Pedro Ponce de Leon, desenvolveu um método de educação para
pessoa com deficiência auditiva, por meio de sinais. Esses métodos contrariaram
o pensamento da sociedade da época que não acreditava que pessoas surdas
pudessem ser educadas. Já na Inglaterra John Bulwer defendeu um método para
ensinar aos surdos a leitura labial, além de ter escrito sobre a língua de
sinais.
Juan Pablo Bonet na Espanha, em 1620 escreveu sobre as
causas das deficiências auditivas e dos problemas da comunicação, condenando os
métodos brutais e de gritos para ensinar alunos surdos. No livro Reduction de
las letras y arte para ensenar a hablar los mudos, Pablo Bonet demonstra pela
primeira vez o alfabeto na língua de sinais.
Ambroise Paré (1510-1590), médico francês do Renascimento,
aperfeiçoou os métodos cirúrgicos para ligar as artérias, substituindo as
cauterizações com ferro em brasa e com azeite fervente. Foi grande a sua
contribuição na criação de próteses
Martinho Lutero, um dos pioneiros do protestantismo,
afirmava que pessoas deficientes não possuíam natureza humana e eram usadas por
maus espíritos, bruxas, fadas, duendes e que deviam ser afogadas.
Durante os séculos XVII e XVIII houve grande desenvolvimento
no atendimento às pessoas com deficiência em hospitais. Havia assistência
especializada em ortopedia para os mutilados das guerras e para pessoas cegas e
surdas.
Philippe Pinel foi o pioneiro na explicação que pessoas com
perturbações mentais deveriam ser tratadas como doentes, ao contrário do que
acontecia na época, quando eram trados com violência e discriminação.
No Século XIX, em 1819, Charles Barbier (1764-1841), um
capitão do exército francês, atendendo a um pedido de Napoleão, desenvolveu um
código para ser usado em mensagens transmitidas à noite durante as batalhas. Em
seu sistema uma letra, ou um conjunto de letras, era representado por duas
colunas de pontos que por sua vez se referiam às coordenadas de uma tabela.
Cada coluna podia ter de um a seis pontos, que deveriam estar em relevo para
serem lidos com as mãos. O sistema foi rejeitado pelos militares, que o
consideraram muito complicado.
Barbier então apresentou o seu invento ao Instituto Nacional
dos Jovens Cegos de Paris. Entre os alunos que assistiram a apresentação
encontrava-se Louis Braille (1809- 1852), então com quatorze anos, que se
interessou pelo sistema e apresentou algumas sugestões para seu
aperfeiçoamento. Como Barbier se recusou a fazer alterações em seu sistema,
Braille modificou totalmente o sistema de escrita noturna criando o sistema de
escrita padrão – o BRAILLE – usado por pessoas cegas até aos dias de hoje.
O Século XIX, ainda com reflexos das idéias humanistas da
Revolução Francesa, ficou marcado na história das pessoas com deficiência.
Finalmente se percebia que elas não só precisavam de hospitais e abrigos, mas,
também, de atenção especializada. É nesse período que se inicia a constituição
de organizações para estudar os problemas de cada deficiência. Difundem-se então
os orfanatos, os asilos e os lares para crianças com deficiência física. Grupos
de pessoas organizam-se em torno da reabilitação dos feridos para o trabalho,
principalmente nos Estados Unidos e Alemanha.
Apesar dessas iniciativas, a deficiência, ou a pessoa
portadora com deficiência era vista como um estorvo, tanto que era isolada em
um asilo ou orfanato, devido a pessoa com deficiência ter uma representação
negativa, de pessoa “de menos”, necessitada de caridade, digna de pena, “o
coitadinho”. Mas, o que é uma representação social?
Representação social é uma categoria de analise usada por
Serge Moscovici, um psicólogo social, e procura tornar familiar aquilo que não
conhecemos.
"As representações que nós fabricamos – duma teoria
científica, de uma nação, de um objeto, etc – são sempre o resultado de um
esforço constante de tornar real algo que é incomum (não-familiar), ou que nos
dá um sentimento de não-familiaridade. E através delas nós superamos o problema
e o integramos em nosso mundo mental e físico, que é, com isso, enriquecido e
transformado. Depois de uma série de ajustamentos, o que estava longe, parece
ao alcance de nossa mão; o que era abstrato torna-se concreto e quase normal
(...) as imagens e idéias com as quais nós compreendemos o não-usual apenas
trazem-nos de volta ao que nós já conhecíamos e com o qual já estávamos
familiarizados (Moscovici, 2007, p.58)"
Como pudemos perceber a representação social da pessoa
deficiente é negativa, daquele que era pecador, amaldiçoado, alguém desprezado
ou alvo da caridade bondosa e não pessoa, sujeito de direitos.
Apesar dos avanços alcançados, principalmente no Brasil, com
o estatuto da pessoa com deficiência, Lei 7699/6 que em seus direitos
fundamentais assim determina: no Art. 11. A pessoa com deficiência tem direito
à proteção à vida, mediante efetivação de políticas sociais públicas que
permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência.
Hoje falasse muito em inclusão, a TV mostra em horário nobre
a historia comovente de uma cadeirante, estimulasse ao esporte, o governo
pressiona as empresas privadas com a Lei de Cotas para pessoa com deficiência,
mas, não podemos esquecer que numa época de capitalismo global, em que
necessitamos de aumento do consumo e principalmente na área tecnológica onde há
grandes investimentos em próteses e orteses.
Contudo, a pessoa com deficiência ainda é representada
negativamente, invisível na cidade sem acessibilidade, no transporte publico de
qualidade baixa que sempre cheio impossibilita a locomoção, a escola publica,
ainda despreparada para receber e ensinar com qualidade seus alunos chamados
“especiais”.
Na verdade a inclusão é a constatação da exclusão. Que a
sociedade exclui, torna invisível, coloca para debaixo do tapete esses
“incômodos” seres “de menos” que os desafia e mostra a vulnerabilidade humana.
A deficiência uma construção social, uma representação que
fazemos de pessoas que não vêem, não ouvem, não se locomovem, não pensam e não
aprende como nós, porque nos tomamos como a medida de todas as coisas.
O corpo humano, esse extraordinário e maravilhoso corpo
humano se reorganiza para que a pessoa com deficiência continue a viver e
desenvolver-se. Assim o deficiente auditivo “ouve” com a pele e com os olhos, o
deficiente visual “vê” com a audição, o tato, o olfato, o deficiente físico
encontra formas de equilibrar o corpo, quem não conhece a mulher que sem braços
fazia todos seus afazeres domésticos com seus pés? Ou o filme estrelado por
Daniel Day – Lewis “Meu Pé Esquerdo” que conta a historia de um jovem que nasce
com paralisia cerebral numa família irlandesa pobre e se torna pintor e
escritor utilizando apenas seu pé esquerdo? O deficiente intelectual aprende
através de outras formas e o deficiente mental “percebe” outra realidade
diferente da nossa, mas, todos eles continuam sendo seres humanos com todas as
suas potencialidades e capacidades.
Candida Maria
http://www.ampid.org.br
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em
psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003.
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