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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Tecnologia e Espiritualidade


Denise de Assis 
Freud, em o Mal Estar na Civilização (1929-30), ao comentar sobre os avanços científicos e tecnológicos apontou que tais realizações se assemelhavam à concretização dos desejos dos contos de fadas. Segundo o autor, há muito tempo atrás, o homem havia formado uma concepção ideal de onipotência e onisciência criando seus deuses e atribuindo a estes tudo que parecia ser inatingível aos seus desejos ou ao considerado proibido. Assim, as conquistas tecnológicas do homem permitiram que ele se aproximasse bastante deste ideal, tornando-se praticamente um deus, uma espécie de “Deus de prótese”.
O autor continuou seu raciocínio argumentando que no futuro, outras descobertas indicariam mais semelhança do homem com Deus, mas naquele momento, o homem não se sentia feliz em seu papel de semelhante a Deus. Este desconforto estaria diretamente relacionado às exigências impostas ao processo de civilização, pois mesmo com todos os avanços, a tendência do homem estaria em defender seus interesses individuais em oposição à vontade do grupo.
Neste sentido, até pouco tempo atrás, a sociedade era regida por padrões que ‘definiam’ o que era ser bem sucedido na vida profissional, pessoal e familiar. As regras sociais eram mais rígidas no sentido de indicar, por exemplo, culturas que não poderiam se misturar, uniões que deveriam permanecer entre determinadas famílias, dogmas que não poderiam ser contestados e na vida profissional, carreiras que eram seguidas devido à tradição familiar ou que carregavam o status para ser um profissional bem sucedido. Com a ruptura de todo este padrão rígido, a humanidade parece ter ido para o lado oposto: pois o que era reprimido por conta das exigências da civilização foi substituído pela satisfação das próprias exigências.
Assim, a questão de não se permitir viver a falta, a exigência de estar em primeiro lugar e ser bem sucedido e a importância do ter em lugar do ser, por exemplo, externam os padrões humanos que estavam velados pelas exigências da civilização e que se tornaram evidentes. Pois mesmo diante da diversidade de possibilidades que encontramos em todos os sentidos na atualidade, de um modo geral, a convivência com outros seres humanos continua, com base na obra de Freud, a ser um dos impedimentos ao alcance da felicidade plena. Ilustrando a posição do homem entre o passado e a atualidade com uma metáfora, seria o mesmo que entregar um computador de última geração nas mãos de uma pessoa que jamais teve acesso a qualquer um deles.
Comparando a época de Freud com o momento atual, a questão ainda se encontra em querer enquadrar o ser humano e todas as suas possibilidades em padrões de comportamento e atitudes na tentativa de manter um controle que só faz aumentar a competitividade e agressividade, impedindo a reflexão e avaliação de que não se pode comparar o que é diferente. Esta competitividade sem medida resulta no fato de que o diferente deve ser destituído ou excluído e não respeitado.
Neste sentido, as novas tecnologias podem demonstrar como lidar com a diversidade diante das potencialidades de cada um. São vários produtos, das mais variadas espécies que têm por objetivo facilitar o dia a dia. Poucos sabem ou se dão conta de que em uma empresa de desenvolvimento de tecnologias, por exemplo, existem os profissionais que projetam os modelos, outros responsáveis pela criação de novas modalidades de uso e outros com a capacidade de perceber os defeitos e definir o que precisa ser aprimorado. Todos trabalhando em conjunto, procurando evitar ao máximo que o consumidor receba o produto com defeito, além de garantir a eficiência do produto na hora da utilização: seja na arte, na economia, na comunicação, na educação, na saúde, entre outros. Cada profissional com sua característica, com seu perfil, com seu conhecimento.
Por outro lado, o que se faz com a utilização das facilidades tecnológicas relaciona-se a escolhas: a mesma tecnologia que possibilita a união e comunicação entre pessoas queridas que estejam a quilômetros de distância, pode separar aqueles que moram na mesma casa.
O que vai definir a qualidade da relação é a descoberta de que apesar de todas as facilidades tecnológicas é necessário considerar o universo de possibilidades que o homem precisa descobrir a respeito de si mesmo. Em vez de rotular sem fundamento, começar a considerar que é necessário pensar, respeitar e verificar que existem pessoas diferentes, grupos diferentes, maneiras diferentes de pensar... afinal de contas, estamos em constante “construção” e precisamos aprimorar nossas características, crescendo e aprendendo que acima de tudo é necessário conviver.
Neste momento em que a ciência começa a considerar que a busca pela espiritualidade saudável (no sentido do respeito à vida, respeito às diferenças, no resgate das relações e na consideração de valores que estão além da matéria) contribui para o bem estar físico e mental, faz-se necessário um momento de reflexão: o homem vai continuar um “Deus de Prótese” eternamente insatisfeito se não descobrir que a verdadeira essência da criação não está em romper limites da vida material competindo por aquilo que não faz parte de sua potencialidade ou buscando satisfazer as próprias exigências. Assim, é necessário dar-se conta de que precisa conviver, descobrindo que a melhora na qualidade de vida é a consequência da descoberta de suas próprias habilidades e do que é capaz de criar e recriar.

  Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade – Universidade Veiga de Almeida (RJ), psicóloga, analista de sistemas, membro da Sociedade de Teologia, Espiritualidade e Saúde da Universidade de Duke (EUA) .
Extraido de http://cienciaespiritualidade.com/wp-content/uploads/2015/01/Tecnologia-e-Espiritualidade.pdf em 19/01/2015 ás 21:45

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Muito maneiro, 100 comentários a respeito deste ensaio, com certeza este tem sido um dos grandes questionamentos pessoal, a que ponto nós como sociedade mundial chegamos, ou seja nos tornamos cada mais ESCRAVOS destes apetrechos tecnológicos. A visão e percepção de Denise Assis em suas palavras, ao escrever o artigo à cima, é de uma valiosidade MACRO. Talvez estamos nos esquecendo que o maior SOFTWARE é o coração humana que, tem a capacidade de aprender com o outro, desenvolver programas internos incalculáveis numa relação mútua, seja ela conjugal, pais e filhos, ambiente profissional e etc. Neste processo, o OUTRO é a resposta de nossas ansiedades por deuses com próteses, criados por nós mesmo... Muito show...

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